O Prato do Bileca
(Por José da Cruz)
A pequena Natin dos anos trinta, hoje Natinópolis, perdida no fundão de Goiás, não mudou em quase nada, nos últimos quarenta anos. Quatro ruas em uma direção, cinco em outra, formando ângulos retos. Se quiser andar por toda a sua extensão é possível que você o faça em menos de 60 minutos e veja quase tudo o que se tem pra ver. Só uma coisa você não pode ver ali, o prato do Bileca.
Aquele não parecia um dia como outro qualquer, era assim... como direi? Meio diferente. O sol parecia mais acalorado como diria minha mãe e a turma nem tinha ainda começado a combinar de ir banhar no poço depois da aula. É, era sempre assim, vinhamos correndo pela rua e dando sinal pra os colegas, todos dentendiam, era para se juntarem lá perto da casa do Zé Cesário pra irmos banhar no córrego. Mas, aquele dia, era deveras diferente, o grupo escolar naquele tom de laranjado sujo, nos recebeu muito sisudo. Assim que colocamos o pé dentro da sala, dona Lina, disse que nós iriamos lá pra perto da olaria do Sr. Quincas que iríamos ter uma aula ao céu aberto.
No início, não entendi muito bem, mas logo depois alguém me disse que era aula onde não tem sala, que coisa! Ficamos curiosos e ansiosos para chegarmos logo. Na estrada, enquanto caminhávamos a balbúrdia era total. Assim que chegamos, Dona Lina, mandou que pegássemos barro e levássemos pra debaixo de uma gameleira, era ali que iríamos ter a tal aula. Postando-se ali na frente, com aquela pose de professora, dona Teodolina foi eloquente: "Agora nós vamos bater o barro e fazer pratos." - Sentenciou. Todos colocaram mão à massa, ou melhor, ao barro. Fiz um prato como o bojo mais pequeno e as abas bem maiores. No meu dentender o problema daquela beirada de prato muito pequena, era que, em inúmeras vezes, eu acabava com o polegar dentro do feijão e isso me deixava pau da vida. Foi pensando assim que caprinchei na aba, mas não esqueci de afundar um pouco mais o bojo, também tinha raiva daqueles pratos rasos que não cabiam quase comida nenhuma. Fiz alguns desenhos na aba, no fundo não, ia ficar debaixo da comida mesmo.
- Mas o que é isso Bileca?! Você ficou louco? - Era o grito de dona Teodolina. Todos nós voltamos-nos para aquele lado. Ali estava dona Lina, mão na escadeira, as pernas um pouco separadas, batendo o pezinho direito no chão ritimadamente, desafiadora como sempre. "Onde é que você já viu, na sua vida, um prato quadrado?" - Mais professora... - Balbuciou Beliziário Augustti de Vasconcellos, o vulgo Bileca. - Mais o quê? Mais o quê? - gritou. Eu sou vinte e oito anos mais velha que você, nunca vi, na minha vida, um prato quadarado. Toda a vida o prato foi redondo, sempre foi assim e sempre funcionou. Quem você acha que é pra querer mudar o formato do prato?! Ato contínuo, dona Teodolina, sapecou um pisão no prato quadrado do Bileca, fazendo-o voltar a ser um monte de barro. - Deixe de bancar o engraçadinho e faça um prato direito como os outros estão fazendo. - Uma gargalhada geral encerrou o epsódio.
Naquele dia, voltei para casa encucado com uma coisa... "Porque será que não se podia fazer um prato quadrado?!" Um prato quadrado seria bem melhor pra fazer aqueles empilhamentos enormes sem o perigo de cair e ficar rolando pelo chão. Na hora de fazer, era bem mais prático, não necessitaria tanto de compasso, uma pequena régua de trinta centímetros resolveria o problema. Na hora de cobrir um prato com o outro, os pratos quadrados encaixariam bem melhor. E ainda tem mais, quando a mãe gritasse, enchendo o saco, dizendo que ossinhos restantes da comida deveriam deixar no cantinho do prato e não jogados no meio da casa; com um prato quadrado a gente teria quatro cantinhos... Mas porque será que não se pode fazer um prato quadrado?!
Eu continuava ali, no meio da feira, com aquele prato de alumínio na mão, meus olhos voltaram-se pra o rótulo, exatamente onde estava escrito "técnico responsável - Beliziário Augustti de Vasconcellos" com letras um pouquinho maior se lia, "Indústrias Beli" e seguia o endereço da fábrica. "O Bileca", pensei e voltei os olhos pra o amontoado de panelas, bacias, travessas, frigideiras, garfos, lamparinas, funis e colheres, partos de todos os tamanhos, nenhum quadrado. Sem fechar os olhos vi, parecia bem ali, na minha frente, a figura de Dona Lina, desafiadora, seus gritos ainda ecoavam nos meus ouvidos... "Faça um prato direito como os outros estão fazendo." Vi o pisão e o monte de barro em que se tornara o prato do Bileca. O garoto franzino conhecido por Bileca, tinha naquela época, como eu, onze anos, ele se tornara um funileiro bem sucedido, dona das Indústrias Beli. Hoje, já se passaram trinta e dois anos e eu nunca mais tinha visto, na minha vida, um prato quadrado.